Fui até Brasília na semana passada. A cidade que nasci. Fazia tempo que eu não dava as caras por lá. Foi estranho. Cheguei quase de madrugada, na última quarta, e fiquei sentado na varanda do hotel olhando a cidade lá de cima. Suas luzes laranjas dançando no horizonte como chamas. Os carros sibilando pelas estruturais e os ônibus noturnos com poucas pessoas dentro. Quase ninguém nas ruas. Fiquei observando os amplos gramados cinzas como o calçamento no inverno. No meu silêncio, senti uma saudade morta. Da época que eu andava por ali, quando tinha poucos amigos e nenhuma mulher. Uma tristeza profunda me assolou. Fiquei pensando no monstro que me tornei.
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Cheguei a São Paulo ontem no começo da madrugada. Estava pregado após rodar 3000 quilômetros em 5 dias. Mesmo com os olhos fechados ainda conseguia ver o mar de faróis que encarei na Anhanguera. Em casa, sentei no sofá e comecei a coçar o saco com força. Um marimbondo picou meu ombro e o calombo latejante me incomodava. Minha mulher subiu e desabou na cama. Fiquei encarando o dedão do meu pé e pensando em como ele é feio. Nisso, notei a falta de Alicate. Por onde andaria aquele gato filha da puta?, pensei. Sentia sua falta. Continuei trabalhando no saco e fazendo planos que esqueceria na manhã seguinte. Tive idéias obscenas, acho. Eram umas 3 e meia da manhã quando tudo apagou. Se num momento encarava o teto, no outro não enxergava nada. Um breu do caralho. Procurei o isqueiro na mesa apalpando tudo e derramei um copo de suco pela metade. Cachorros latiam na vizinhança. O alarme de uma produtora na rua debaixo disparou. Na escuridão, encontrei o isqueiro e o acendi. Fiquei parado olhando a chama, pensando em como sou imbecil, até queimar a ponta do dedo. Lá fora tudo estava apagado, os postes, os prédios e as casas. Decidi dormir.
Acordei hoje com minha Pequena reclamando com o gato. Desci e encontrei um baita cagalhão no piso da cozinha. Outro, esse mole como mingau, estava embaixo da mesa. Alicate dormia em sua almofada encardida.
- Caralho, quê que isso, seu filho da puta? – eu berrei. – Encheu minha casa de merda!
O gato fingiu que não era com ele.
- Qualé, parceiro, eu to falando com você – tentei mais uma vez -, tu mora aqui, come dorme e agora quer melar meu chão de bosta assim?!
Nada. Daí, perdi a esportiva. Peguei o vagabundo pelo pescoço e afundei seu focinho na merda.
- Isso aqui é errado – eu grunhia tentando explicar aquela merda toda.
- Larga ele! Larga ele, caralho! – minha mulher gritava na minha orelha esquerda.
Arremessei o gato pra trás, mas ele acertou a porta e caiu arriado com as patas para cima.
- Miaurrrrrrrrrrrrr!!! – ele soltou um gemido do fundo das entranhas.
- Ai, caralho, matei o gato... – pensei, ou disse, não lembro. Entrei em choque.
- AAAHHHHH!! AHHHH!! - minha mulher perdeu o controle –, você matou o gato! Matou gato!
- Cala a boca! Cala a bocaaaa! - me descontrolei – Olha aí, fiquei histérico também.
O escarcéu estava formado. Corri até o gato e notei que o problema era outro. Seu pêlo estava imundo e suas costas cheias de feridas. Alicate andou se arrebentando pelas ruas. Peguei ele no colo e seus miados aumentaram.
– Coitado – disse pra minha mulher –, o Alicate tá zuado.
Larguei-o no chão. Ele se arrastava como um senhor consumido pela vida. Fui até a vizinha perguntar o quê o bichano andou fazendo nos dias que fiquei fora.
– Olha – ela disse –, seu gato quase não deu as caras. Coloquei comida todos os dias, mas encontrei ele apenas na sexta. Tinha algo estranho.
Liguei para minha mãe que é veterinária e lhe contei o ocorrido. Segundo ela, ou ele foi envenenado pelo Sistema ou apenas comeu alguma porcaria estragada em suas perambulações noturnas. Daí me passou um remédio para limpar o bichano por dentro.
Porra, fiquei num remorso foda. Ainda estou. Fiquei pensando que aqueles dois cagalhões na cozinha poderiam ter sido apenas uma forma de chamar nossa atenção, que nem um bebê que se esgoela quando está todo assado, ou um moleque que corta os pulsos no banheiro enquanto a família assiste TV.
Espero que Alicate sobreviva.