Thursday, February 21, 2008
a rodovia que partiu meu coração em dois
Na minha casa no deserto. Por volta de 1962. Com a lua estilhaçada no céu, como o espelho da fossa no escuro do lado de fora. Você vem me visitar. A única pessoa que me traz flores, empoeiradas como os livros na estante. O cão não te esqueceu e faz festinha, sapateando e mijando no piso. Penso em descarregar minha Magnum nele, no entanto, apenas coloco a água para ferver. Vamos tomar um chá? Conta-me todas as novidades. Somos mais que amigos. Pergunto se ainda continua com aquele gigolô desgraçado. Já era de se esperar. O fogo corre em minhas veias como um baque de álcool de cozinha. O silêncio impera por alguns segundos, sendo possível escutar um alfinete cair no chão. Mudo de assunto. O que será que aconteceu com Valentina, a bêbada? Arrumou um velhote bem de vida em Tabuleiro Alto, agora trabalha no balcão de um armazém. Eu apenas escuto toda essa ladainha que não faz o menor sentindo. Quero saber o porquê de você vir aqui regar minhas plantas com água sanitária. Quero entender o porquê dessa palhaçada toda que o Fido faz quando você chega. Mas na verdade, estou cagando para tudo isso. Por onde você anda eu posso sentir, como o vento que sopra e levanta toda essa areia que entra pela janela. Você cantarola uma canção esquecida e gira o corpo. Lembra quando você bateu com a moto no poste em Tinguá e estourou a testa? Como poderia esquecer, eu digo, você enfaixou minha cabeça com sua saia branca. Aquela vez só foi pior que o dia que estava sem capacete e engoli uma varejeira, você ria e dizia que eu geraria bernes na barriga. E quando eu te vesti de mulher? Isso ai é piada. O cão deita e coloca as duas patas dianteiras sobre o focinho. Sua casa está imunda. Eu sei, é apenas areia. Todo mundo é muito solitário por essas bandas, você diz. Disso eu não sei, apenas tenho certeza que nunca mais dividirei nada com você. E pelo menos aqui fica distante da rodovia, assim meus cães não são atropelados e divididos em dois. Fido caminha rumo ao curral sob a luz prateada da lua. De cabeça baixa. Ele está velho e cansado. Fico impressionado em como ele está parecido com John Henry, aquele caridoso de merda. Cruzo as pernas esticadas batendo com o salto da bota no piso num estampido seco. Coloco as duas mãos atrás da cabeça me espreguiçando. Lembro de um porre que tive com Valentina em 56. Quando rolamos na lama como dois suínos apaixonados.
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