Monday, January 21, 2008
quase, nunca foi o bastante
Quase, por um bom tempo, foi o bastante. O suficiente. Dias que amanhecem escuros numa rodoviária no centro de uma cidade de interior que eu conheço muito bem. Eu cheguei numa manhã assim. Havia voltado apenas para curar a dor de um amor perdido. Eu procurava respostas sussurradas pelo vento que saia da sua boca. O único telefone que eu ainda guardava na memória e consegui discar num orelhão a cobrar. Sua voz parecia morta, carregada de uma tonelada de vacilos, uma fuligem, que você nunca ousaria admitir a ninguém. Cheguei à sua casa debaixo de uma chuva forte. Você estava mais acabada que nunca. Sua mãe assistia Vale a Pena Ver Novo e não me reconheceu, ou pelo menos fingiu. No quarto, uma toalha com pequenos furos, como sua pele, amor da minha vida. Coloquei minha maleta sobre sua cômoda. Você ficou ali sentada. Não parecia confortável. Eu ainda posso ouvir o som da lixa contra suas unhas. Ainda posso ver teu rosto iluminado pela luz opaca de um longo inverno que entrava pela janela. Ninguém mais está sozinho agora. Lembro-me do dia em que me disse que estava grávida. E chorou amarrada em mim. Aqueles moleques ali não sabem o quê estão falando. Aos 15 anos. Só que o filho não era meu. Isso foi há muito, muito tempo atrás. Vendíamos papelotes para os playbas da escola com o único intuito de pagar um aborto. Um aborto que custou muito pra você, já que te tornou menos que muitas mulheres, segundo sua mãe. Eu me lembro bem. Não era pra ser tão difícil. Não era para ser impossível. Sua felicidade comprada em becos com esgoto a céu aberto. Usando as ruas para se esconder da vida. A pia da cozinha e as pílulas coloridas de sua mãe espalhadas sobre ela. Quase, sempre será o bastante. Íamos para o Parque Ecológico e nos escondíamos onde a mata era mais fechada. Você escrevia poesias e lia para mim. Parecia um anjo sujo, com suas madeixas douradas cheias de cachos e folhas secas. Hoje está mais para uma pintura esquecida num depósito úmido debaixo da escada de um sobrado. Seu sorriso desapareceu como uma floresta após um incêndio criminoso. Não lê mais nada. Não possui uma única novidade para me contar depois de todos esses anos. Não se importa mais com música ou pessoas. Eu não sei. Pode parecer o velho clichê da menina que sofreu abusos na infância e depois perdeu o rumo, entretanto, isso não é verdade. Você era ligeira e tinha idéias boas, precoce e divertida. Vivia fazendo piadas das minhas tendências suicidas, tanto que até percebi o quanto aquilo era uma grande bobagem. Quase, nunca foi o bastante. Arrumou os caras errados. E perdeu a infância um pouco cedo demais, só que isso acontece com moleques como aqueles que nós fomos. Nunca tivemos nada sério. Éramos irmãos que trepavam gelados após um baseado. Éramos um casal que formava uma gangue. Éramos os desgracinhas cheiradores de cola. Eu fui até sua casa naquele dia, apenas pra te pedir ajuda. Queria ver como você passava. Algo me cortava. Quase, nunca foi o bastante. E você já não acreditava. Você se lixando na beirada da cama. Com o baton borrado e o lápis preto ao redor de seus olhos verdes e tristes. Disse que tinha se arrumado para mim. Atrás, pela janela eu via, uma cidade que um dia me pertenceu, seus prédios descascados com janelas de metal, o céu cinza de inverno, o som do motor dos ônibus. Uma cidade que perdeu todo sentido para mim. Pensei em me aconchegar ao seu lado, segurar sua mão e dizer o quanto sentia por você e por toda essa merda que havíamos nos tornado. Mas, ao invés disso, apenas abri minha maleta e atirei uma poesia antiga que havia ganhado de você no Parque. Nela dizia que quase, nunca foi o bastante. Quase, nunca será o suficiente. Fui embora na chuva. Sua mãe se despediu, mas eu não respondi. No ponto de ônibus, um cara vendia revistas pornográficas, com meninas de rosto angelical, para três caras bem-vestidos.
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1 comment:
"quase, nunca foi o bastante" é um texto lindo, como eu te disse uma vez no parlapatões. naquele eu ainda não sabia que ele se transformaria numa jura que morreu sem oração. soube depois. acontece. seu blog é muito legal. Bj.
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