Wednesday, June 15, 2011

Deserdado

Sempre dirijo por aí. Já cruzei as fronteiras sobre quatro rodas umas 5 vezes, talvez seis. Geralmente de madrugada, quando a segurança é falha ou inexistente. Sempre sozinho, no volante, os olhos atentos tanto na pista quanto nos retrovisores. O rádio sintonizado numa estação AM cheia de ecos, onde o locutor de voz grave e cheia de drama conta causos de famílias de cidades do interior do Rio Grande do Sul. Faz muito frio por aqui nessa época do ano. E não posso me encolher. Estou cada vez mais longe. Isso tudo talvez seja para encontrar um caminho. Quando o sono me alcança, geralmente à noite, quando meus olhos e joelhos e juntas cansam, quando a fadiga de pilotar domina, procuro algum matagal e me embrenho com a barca. No meio da escuridão, de vez em quando alumiado pela luz prateada da Lua e das constelações. Desço do carro e levanto a vegetação amassada ao redor, apago meus rastros, sob o vasto manto negro do céu. Pego minha lanterna, um cobertor cinza felpudo e meu fogareiro de acampamento. Posiciono minhas coisas, acendo o fogo, despejo água numa lata de metal que coloco para ferver; abro a porta traseira do lado do motorista para proteger o fogo do vento frio e seco de outono e fumo um cigarro. Escuto o som da brasa queimando o papel. O som de grilos e imensos besouros voando que zunem ao redor. Caminhões eventualmente sibilam na rodovia. Depois de ferver a água, a despejo num copo plástico de macarrão instantâneo e o que sobra numa caneca com café solúvel. Abro o livro e leio enquanto o macarrão amolece. Após meu jantar, caminho em volta do carro e confiro se posso ser visto da rodovia, quando tenho certeza de que estou seguro, deito no banco traseiro, travo as portas e me cubro. Me sinto dentro de um casulo enquanto o mundo imenso e aterrorizante gira lá fora. Ali no banco de trás do carro, uso a mochila de travesseiro, minhas pernas ficam dobradas para que meu corpo possa caber. Penso em me masturbar, mas algo implacável cresce dentro do peito, como uma solidão completamente sem sentido, afinal de contas, fiz minhas escolhas, e não adianta esperar que o céu caia sobre minha cabeça. O vento sopra lá fora. Me encolho como se quisesse segurar a alma. Os bancos da frente servem como grandes cortinas de couro, como uma tampa que me esconde. Deixo o relógio no assoalho com o despertador engatilhado para antes do amanhecer, o que deve acontecer em menos de 3 horas. O revolver repousa logo ao lado. Preciso me garantir, se eles me alcançarem, me entrego morto. Sinto algo me abraçar. Acho que vejo anjos brilhantes. Eles vieram cantar uma canção para mim.