Saturday, October 16, 2010

quase, nunca foi o bastante

Quase, por um bom tempo, foi o bastante, o suficiente. Dia que amanhece escuro como sombra de beco numa rodoviária no centro de uma cidade de interior que reconheço muito bem. Eu cheguei numa manhã assim, apenas para curar a dor de um amor perdido. Procurava respostas sussurradas pelo vento que saía da sua boca. O único telefone que eu ainda guardava na memória e consegui discar num orelhão a cobrar. Sua voz parecia enferrujada e carregada de uma tonelada de vacilos, fuligem, que você nunca ousaria admitir a ninguém. Cheguei à sua casa debaixo da chuva. Você mais acabada que sempre. Sua mãe assistia Vale a Pena Ver Novo não me reconheceu, ou pelo menos fingiu. No quarto, uma toalha com pequenos furos, como sua pele lisa, amor da minha vida. Coloquei minha maleta sobre a cômoda banguela de puxadores. Você ficou ali sentada. Não parecia confortável. Eu ainda posso ouvir o som da lixa contra suas unhas. Ainda posso ver teu rosto iluminado pela luz opaca de um longo inverno que entrava pela janela. Ninguém mais está sozinho agora. Lembro-me do dia em que você me disse que estava grávida e chorou amarrada em mim. Aqueles moleques ali não sabem o quê estão falando. Aos 15 anos. Só que o filho não era meu. Isso foi há muito, muito tempo atrás. Vendíamos papelotes para os playbas da escola com o único intuito de pagar o aborto. O aborto que custou muito pra você, que te tornou menos mulher, segundo sua mãe. Eu me lembro bem. Não era pra ser tão difícil. Não era para ser impossível. Suas pequenas ofertas compradas em becos com esgoto a céu aberto. Ruas para se esconder da comédia da vida comum. A pia da cozinha e as pílulas coloridas de sua mãe espalhadas. Quase, sempre será o bastante. Íamos para o Parque Ecológico e nos escondíamos onde a mata era mais fechada. Você escrevia poesia e lia para mim. Parecia um anjo alvejado, com madeixas douradas cheias de cachos e folhas secas como árvore de cerrado. Hoje está mais para pintura esquecida em depósito úmido embaixo de escada de sobrado. Seu sorriso esfarelado como uma floresta após um incêndio criminoso de beira de estrada. Não lê mais porra nenhuma. Não possui uma única novidade para me contar depois de todos esses anos. Não se importa mais com os pássaros da área descoberta. Eu não sei. Pode parecer o velho clichê da menina que sofreu abusos na infância e depois perdeu o rumo, entretanto, isso não é verdade. Você era ligeira e tinha idéias boas, precoce e divertida. Vivia fazendo piadas das minhas tendências suicidas, tanto que até percebi o quanto aquilo era uma grande bobagem. Quase, nunca foi o bastante. Arrumou os caras errados. E perdeu a infância cedo demais, embora isso aconteça com moleques como aqueles que nós sempre fomos. Nunca tivemos silêncio. Éramos irmãos que trepavam gelados após um baseado. Éramos um casal que formava uma gangue. Éramos os desgracinhas cheiradores de cola. Eu fui até sua casa naquele dia apenas pra implorar ajuda. Queria ver como você passava. Algo me cortava como navalha, como som de piano na madrugada. Quase, nunca foi o bastante. E você já não acreditava. Se lixava na beirada da cama. Com o baton borrado e o lápis preto ao redor dos olhos verdes fritos. Disse que havia se arrumado só para mim. Atrás, pela janela, eu via, uma cidade que um dia me pertencera; seus prédios descascados com janelas de metal; céu cinza de inverno; som de motor de ônibus em ladeira. Uma cidade que perdeu todo sentido. Pensei em me aconchegar ao seu lado, segurar sua mão e dizer o quanto sentia por você e por toda essa merda que havíamos nos tornado. Mas, ao invés disso, apenas abri minha maleta e atirei uma poesia antiga que havia ganhado de você no Parque. Nela estava escrito que quase, nunca fora o bastante. Quase, nunca será o suficiente. Fui embora na chuva. Sua mãe se despediu, eu não respondi. No ponto de ônibus, um cara vendia revistas pornográficas - com meninas de rosto angelical - para três sujeitos bem-vestidos.

Tuesday, October 05, 2010

She won´t be my gal no more

Vinte milhões de habitantes nesta cidade, no entanto, não é pra você que devo satisfações, pare de fazer barulho à toa. Fica longe de mim, boneca. Só um pouco. Não foi você que me transformou nesse homem violento e descontrolado como uma bandeira num furacão, eu nasci assim. Vou apenas até o bar espremer o chorume da minha cabeça enquanto o céu desaba sobre toldos e telhados. E aí, quando a tempestade passar, eu voltarei para você coçar minhas costas, afinal, todos nós precisamos de alguém, num é mesmo? E não venha me falar de amor adequado ou sobre os rumores espalhados pela cidade sobre o meu temperamento; nem dessas besteiras sobre apostar todas as fichas numa viagem pro deserto de Mojave; sobre jogar as chaves de casa num vaso sanitário de banheiro público. Sinto como se segurasse uma bigorna besuntada de aflição nos braços. Todas as noites. Todas. Eu venho tendo visões e ando escutando vozes. Quando enxergo o céu de São Paulo, com suas nuvens magnetizadas pelas antenas e pelas luzes dos prédios da Paulista. Quando chove na cidade de São Paulo - como hoje - e eu não tenho para onde fugir. Quando respiro o ar úmido e denso e carregado de fuligem, como se estivesse num barco à vela no meio do oceano. Quando caminho devagar pela calçada irregular, acompanhando carros hesitantes e coletivos. Quando cruzo com estranhos e sequer olho em suas faces, pois não estou procurando ninguém e nem quero que me notem. Quando as poças d’água refletem o brilho dos faróis e das lâmpadas dos postes recém acesos. Quando, aos poucos, tudo fica encoberto pela penumbra da noite e a paz me escapa. Quando amo você apenas quando estou realmente triste – e estou sempre triste. Quando não sinto porra nenhuma mas lembro das coisas que preciso fazer antes de morrer. Quando percebo que meus irmãos pegaram carona antes de mim. Quando tenho apenas meus ossos e meus pulmões carregados como um cinzeiro cheio bitucas da noite anterior; minha vida que cozinha dentro do peito. Quando não tenho chances, quando não quero ser importante nem criar uma merda duma bela família. Quando estou além da lama e dentro da loucura.