Friday, April 17, 2009

isn’t it a pity

Ontem, voltando para casa quase de manhã, quando estava perto de onde moro, começou a tocar uma velha canção de George Harrison num CD esquecido que encontrei no porta-luvas do Opala. Fazia um bom tempo que eu não escutava aquela canção. Deixei carro deslizar na banguela pela Cardeal Arcoverde. Estacionei e fiquei encolhido escutando a música inteira quando fui atingido por uma nostalgia que dissolveu - ou estilhaçou - algo dentro do meu peito. Entrei em casa com a música ainda ricocheteando dentro da minha cachola. Sentei no sofá e me lembrei do dia que mostrei essa canção para meu avô.

Era uma tarde de um domingo nublado e estávamos sentados na varanda da modesta chácara dele. Eu e meu avô. No interior de Minas Gerais. Isso em 1992, acho. Ele ia e vinha em sua cadeira de balanço. Descalço. Silencioso. Com os olhos fechados e a cabeça pendendo suavemente para trás. A boca levemente aberta para poder respirar. Peguei um pequeno aparelho de som, liguei na tomada e lhe pedi que prestasse atenção naquela música. Eu era um moleque desencantado, cheio de espinhas no rosto e meu corpo era raquítico e coberto de ralados e arranhões. Não fazia a menor noção de nada. Cagava e andava para o mundo. No entanto, aquela música me atingia de forma brutal, tinha um enorme poder sobre mim, como feitiçaria, me levando a um estado de melancolia confortável, como se eu fosse levado numa canoa Rio Verde abaixo.

Enquanto ela soava no mini-system, ficamos em silêncio olhando a paisagem, entretanto, eu também podia escutar o ranger da cadeira de balanço, um quero-quero gralhava com sua esposa no terreno da frente. O vento soprava fraco, e as árvores que escondiam o rio, atrás da cerca-viva de cipreste, faziam um farfalhar que lembrava o som de uma cachoeira. Tudo parecia se conectar a melodia da canção. Fangio, nosso doberman mestiço, lambia uma ferida pustulenta na pata dianteira esquerda, deitado no piso gelado de granito. Tirei meus óculos e os limpei com o avesso da blusa. Tentei enxergar meu avô sem eles. Tudo era muito turvo. Deitei de costas no chão. As nuvens carregadas dançavam no céu.

Meu avô era um piadista silencioso. Possuía um corpo volumoso, indicando que antes ele fora musculoso, mas os excessos da vida e a gravidade acabaram por vencê-lo. Sua testa era reluzente e sua olhar era profundo como se enxergasse através das pessoas. Gostava de vê-lo andar pelas ruas de Três Corações, com sua indiferença estóica. Sempre aparecia com suas intervenções ácidas quando a família discutia algum assunto banal na mesa do jantar ou do café da manhã. Também inventava jingles pessoais instantâneos que faziam todos rirem durante dias. Um sujeito íntegro que havia sido tenente no Exército brasileiro durante muito tempo.

Quando eu tinha 9 anos de idade, ele me ensinou a empunhar uma arma. Dei alguns tiros no pasto de uma fazenda nas redondezas de Cambuquira. Depois me deu uma aula de como desmontar e limpar um revólver. Lembro que ele foi caçar aves depois e voltou com as mãos vazias e um sorriso acolhedor no rosto. Já era noite e a família inteira estava na cidade. Fomos até a cozinha da fazenda, onde ele acendeu o fogão a lenha e pegou alguns ingredientes na geladeira e nos armários. Naquela noite, ele me ensinou cuidadosamente a preparar um arroz carreteiro suculento. Depois que comemos nos sentamos na varanda, onde meu avô me contou histórias assombradas de um velho de chapéu de palha que foi morto pela mulher, mas que continuava vagando pelos pastos de Varginha sob o luar prateado. Fiquei agarrado às minhas pernas finas com um cagaço filha da puta. Vaga-lumes surgiam e desapareciam na escuridão da noite.

Em 1996, meu avô recebeu um diagnóstico atrasado de pancreatite. Meu pai o trouxe para um hospital decente aqui em São Paulo. Fui visitá-lo, mas ele já estava bem magro e havia sido entubado. Não tenho certeza se me reconheceu ali, naquele quarto frio com cortinas de plástico verde-claro. Dois dias depois, ele morreu com todas as oportunidades que existia para eu agradecê-lo por tudo que me ensinou. Não tive a chance de me desculpar por não ter aproveitado e aprendido mais com sua pessoa fantástica. Não pude sequer abraçá-lo pela última vez.

Ontem, no sofá, senti uma saudade enorme dele. Da forma como ele levava a vida, não se preocupando demais nem deixando os aproveitadores se aproximarem. Ontem, me dei conta de que não posso fugir de quem eu realmente sou. Não posso deixar de acreditar nos meus amigos verdadeiros. Não posso esquecer-me de odiar meus inimigos. Não posso abandonar a verdade. Nem perder a lembrança da maneira discreta que meu avô se preocupava comigo. Sobre o que ele me disse sobre caráter. Sobre começar e terminar muitos livros, no entanto, ele se foi e eu o li apenas pela metade.

6 comments:

Adriana Godoy said...

Texto de puro encantamento. Lindas lembranças, me deu saudade de meu avô também. Belíssimo texto. Beijo.

Helena Machado said...

Nossa, que texto bacana. Descobri através do blog do Mário Bertoloto.
Quando puder, visite o Miçangas.

micangasmus.blogspot.com

Abraço.

Anonymous said...

Escrevendo muito amigão! Parabéns! Puro lirísmo.
forte abraço
Bac

marcela said...

oi carcarah, belo texto. mesmo.
beijos.

Marcita said...

seu texto me lembrou a epoca em que eu era criança e costumavamos viajar de carro com meus pais..
sempre saiamos de madrugada para aproveitar o dia( rodar muitos km), viamos o amanhecer na estrada e minha mãe cantava canções ,que meu pai acompanhava,e que falavam de amor, saudades da terra natal.. mesmo as mais animadas davam uma certa dor no coração..como algo que foi perdido ou fosse inalcansavel..
Lembrei de tantas pessoas que nos acolheram e ajudaram e que nunca poderei agradecer..
Das frases dos caminhoes que hoje não existem mais..

muito bonito como você escreve.
tem que ter coragem.

sorte e amor verdadeiro!!!
e viva a amizade e a alegria!!!!

beijo e um forte abraço!
Marcita

lucio said...

cara, cheguei aqui através do meu brother rubão e curti demais, valeu pelo texto que repercute de forma ainda indescritível por aqui.