Monday, March 03, 2008

o uivo

13 de Maio é uma data, é também o nome de uma rua na Bela Vista, ou o dia do azar. Eu caminho por ali de madrugada. Com uma música na cabeça. Uma traveca crioula gigante se aproxima perguntando “onde fica a sinuca do Godô?”. Aponta pelos arredores com suas mãos de pele escamosa e unhas longas e vermelhas como casca de barata. O balcão de informações é na esquina de cima, eu digo. Debaixo do viaduto noto o brilho da lâmina em sua mão esquerda. Tudo não passa de um sacode. Dou dois passos para trás e levanto meus punhos. Olho no olho. Não seria uma boa idéia, ela percebe antes que eu prove. Um sorriso de canto surge em minha boca e eu continuo andando. Paro para uma mijada vigorosa. Do outro lado escuto algo como um uivo. Torço minha coluna, ainda segurando a piroca, e noto uma mulher encolhida no chão. Seu choro lamuriante aumenta, como o apito de um trem nas encostas de um vale sob o reflexo sem direção da lua. Aproximo-me e pergunto o quê há de errado. Ela me encara vidrada, espumando saliva pelos cantos da boca e balbuciando algo sobre a fruta envenenada que a bruxa do albergue lhe deu. Seus dedos entram e saem dos cabelos emaranhados, ela se movimenta num transe de quem profere um feitiço pré-cataclísmico. A bruxa está solta. Suas roupas fedem à fezes ressecadas pelo sol. Descalça e sofrida como uma plebéia pedinte romana. Vejo que não há nada ao alcance que eu possa fazer. Arranco um cigarro do bolso esquerdo e acendo. Caminho. Penso nas cadelas prenhas sem quintal, que uivam por seus cães levados pela carrocinha. Penso em Sebastião chorando na escada em frente de casa, dizendo que seu coração foi amassado por um martelo de bife. Penso naquele eco debaixo do viaduto. O sol começa a refletir nas janelas dos prédios. As luzes dos postes vão perdendo a força. Do viaduto Martinho Prado, noto os ônibus surgirem barulhentos subindo a Augusta. Peço um pão de queijo no boteco da esquina. Do outro lado do balcão, assisto a traveca mestiça enfiar a língua na orelha de um velho de camisa xadrez. Escuto ele dizer algo como, faz cóceguinhas. Olho para meu lanche. O arremesso, mas erro o cesto de lixo. Levanto e penso em sair correndo até onde meu carro está estacionado..